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quinta-feira, 11 de dezembro de 2025

Raduan Nassar, 90, soa hoje ainda mais radical e demolidor MASÉ LEMOS

 


                                                   Foto - Brasil de Fato

 

UM DOS ASTROS REI DA LITERATURA BRASILEIRA E LATINO AMERICANA,DESTAQUE-SE  

LAVOURA ARCAICA,AFORA UM GRANDE ATIVISTA E MECENAS NACIONAL!

BY  X

Raduan Nassar, 90, soa hoje ainda mais radical e demolidor
MASÉ LEMOS
[RESUMO] Embora tenha dito que a criação literária não vale uma criação de galinhas, Raduan Nassar, que completa 90 anos em 27/11, é um dos principais escritores brasileiros. No texto a seguir, pesquisadora ressalta a força de "Lavoura Arcaica", romance publicado há meio século, no qual escritor, mesclando influências variadas que vão da Bíblia ao poeta Jorge de Lima, promove jogo radical que revira certezas
e desarruma consensos apaziguadores.
"Para onde estamos indo?" pergunta "distraído" a personagem André de "Lavoura Arcaica" depois de abandonar a casa paterna. Ele mesmo responde: "Não importava que eu, caminhando, me conduzisse para regiões cada vez mais afastadas, pois haveria de ouvir claramente de meus anseios um juízo rígido, era um cascalho, um osso rigoroso, desprovido de qualquer dúvida: 'estamos indo sempre para casa'".
A pergunta e a resposta colocadas entre aspas por Raduan Nassar, citações retiradas do romance de formação "Heinrich von Ofterdingen" (1802), de Novalis, reverberam o próprio título, afinal lavoura arcaica é o difícil trabalho da origem, "arké", trabalho ao qual nos conduz, como leitores, também a fazer.
O livro, dividido em duas partes, "A Partida" e "O Retorno", retoma a estrutura clássica da "Odisseia", mas se nutre também da tradição órfica e lírica, próxima a Jorge de Lima de "Invenção de Orfeu" (1952), de onde Raduan retirou a epígrafe: "Que culpa temos nós dessa planta da infância/ de sua sedução de seu viço e constância?".
Afinal, como restituir pela escrita o que está desde sempre perdido, mas que ainda insiste, a exemplo de Eurídice, como presença? O que fazer com o que está no fundo dos arquétipos, do mito, das estruturas sociais que compartilhamos como humanos —e também da nossa história pessoal?
É a esse fundo de "roupas sujas" que somos conduzidos por essa narrativa que não lava nem apazigua, mas antes revira, "perlabora", como indica Freud, visando atingir uma origem reinventada.
Nesse livro, Raduan, filho de imigrantes libaneses que chegaram ao Brasil em 1920, tematiza a transplantação. Narrado em primeira pessoa, aproxima-se de sua experiência biográfica, mas esse "paralelepípedo lírico", difícil de ser engolido para os seguidores dos pressupostos rígidos da impessoalidade moderna, também não adere ao confessionalismo ou à autoficção direta.
Trata-se de uma escrita construída onde o eu é intermediado objetivamente por outros materiais literários, como no trabalho de enxerto que faz de outros livros em sua lavoura.
Ao autor interessa menos a identidade que o processo de hibridização como relação da diferença, que sempre teria existido entre os povos e as culturas, como ele desenvolve no ensaio "A Corrente do Esforço Humano".
Assim, além dos autores antes citados, na nota de autor que aparece na primeira edição do livro estão ainda citados a Bíblia (em especial a parábola do filho pródigo), o Alcorão, "O Livro das Mil e Uma Noites", Thomas Mann, Walt Whitman, André Gide, Almeida Faria e outros. Nas edições posteriores as notas foram retiradas a pedido do autor, assim como a dedicatória ao pai e a indicação do gênero romance.
Após Raduan receber em 2016 o Prêmio Camões, o mais importante da língua portuguesa, a nova edição de sua obra completa pela Companhia das Letras restituiu as notas do autor, tanto de "Lavoura Arcaica" quanto de "Um Copo de Cólera", escrito em 1978, último livro publicado como "escritor". Depois disso ele se tornou uma espécie de fazendeiro que um dia foi autor de um "livro e meio", como se refere ao seu trabalho.
Entretanto não deixou de continuar, à sua maneira, atuando como personagem-ator, que retorna à ação pelo cuidado com o qual acompanha as reedições de seus livros, como quando retirou as mencionadas notas de autor, gesto que se aproxima da atitude da contracultura que pretendia se libertar da tradição e também da autoridade do intelectual como guia da sociedade, além de possibilitar uma leitura mais livre e menos literária, no sentido institucional desse termo.
Raduan também sempre acompanhou de perto as adaptações para o cinema, em especial com o diretor Luiz Fernando de Carvalho, e as traduções de seus livros, como no diálogo próximo que manteve com o tradutor alemão de "Lavoura Arcaica", Berthold Zilly.
Na cerimônia de entrega do Camões, em fevereiro de 2017, fez um discurso contundente contra o impeachment de Dilma Rousseff e o governo Temer. Sua honestidade intelectual transita também para a ação prática, refletida no gesto de doar sua fazenda à Universidade Federal de São Carlos.
Durante muito tempo o meio literário se perguntou se Raduan continuaria a escrever. Alguns amigos mais próximos tentavam descobrir, mas ele sempre negava, repetindo frases bombásticas, tal como a famosa: "Não há criação artística ou literária que valha uma criação de galinhas...".
Raduan, como bom cético e cínico, está sempre duvidando dos poderes da literatura, da instituição literária, "do comércio do prestígio", como ele mencionou em entrevista a Edla Van Steen. Nesse jogo sempre revira seu próprio papel e seu trabalho, movimento de reflexão que encontramos também em seus livros.
Quando começou a escrever, entre os anos 1960-1970, em um mundo polarizando pela Guerra Fria, Raduan Nassar detectou com extrema lucidez a dificuldade de resistir ao poder pela simples tomada de posição ou pela adoção de uma postura marginal que acabaria por reforçar as ramificações autoritárias.
Como, então, exercer a crítica? Como criticar sem tomar desde logo uma posição considerada como superior e, dessa maneira, já enfraquecida em seu poder crítico? Como, afinal, não assumir um ar de indiferença no sentido banal do termo, aquele do cínico pós-moderno que passa de uma posição à outra ao sabor de seus interesses e acaba por ser apropriado pelo sistema? Como driblar essa razão que tudo corrói?
Em nosso tempo, quando assistimos à volta brutal das polarizações e das pretensas verdades absolutas, Raduan se torna ainda mais necessário: o embate entre o filho e o pai em "Lavoura Arcaica" se radicaliza até o ponto de explodir toda a ordem patriarcal, mas também faz desmoronar as pretensões de poder do próprio filho.
A escrita nassariana se forja também como uma diatribe bem ao gosto dos antigos cínicos, através de uma argumentação que ataca de maneira violenta as instituições, os costumes, a hipocrisia, a razão.
Seu jogo é radical, daí o fato de seus personagens lançarem mão dos atos mais extremados —incesto, masturbação, perversão, profanação, crueldade, cólera—, aproximando-se assim dos atos performáticos dos cínicos gregos para abalar os costumes e a moral da polis. Ou seja, seu jogo retórico extremo visa secar a razão, revirando nossas certezas e nos deixando com a dúvida, lugar próprio ao pensamento.
Assim, a literatura de Raduan Nassar inventa uma maneira de desarrumar o mundo do consenso apaziguador, da impossibilidade de comunicação que vem sempre como clichê, como imagens midiáticas, e instaura uma possibilidade de contato, um ponto comum de convergência.
Seu trabalho com a linguagem pretende afetar os sentidos através de uma ironia que se desloca incessantemente para não se prender a um ponto, para não ser socrática e superior. A sátira à razão, ao deslocar sempre o polo da certeza e da crítica para uma outra posição, engendra um mergulho radical na dimensão material da palavra.
Como explica Sabrina Seldmayer no estudo "Ao Lado Esquerdo do Pai" (1997), "Lavoura Arcaica" "consegue, através de uma enunciação desenfreada, enlouquecida, [...]nos falar de um tempo primeiro, cuja língua evocada é originária, em que o corpo está sempre rebaixado para sua instância pré-linguageira".
É do lado esquerdo que emerge ao final também uma voz outra: "a mãe passou a carpir em sua própria língua, puxando um lamento milenar que corre ainda hoje a costa pobre do Mediterrâneo: tinha cal, tinha sal, tinha verbo áspero a dor arenosa do deserto".
Um final que só poderia ser trágico, com a casa em ruínas, única maneira de recriar a origem, não tal como era, mas a partir de um passado liberado do passado, pois assumido pelo trabalho no presente.
Assim, foi possível ao André adulto acessar pela abertura do "vagido primitivo", acessar um outro tempo, não apenas cronológico, mas espiralar, e poder, por sua vez, agora repeti-lo em diferença: "(Em memória de meu pai, transcrevo suas palavras: [....] ‘o gado sempre vai ao poço’)."
Masé Lemos
Professora da Escola de Letras da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), doutora em letras pela Universidade Sorbonne Nouvelle - Paris 3 (2004) com tese sobre a obra de Raduan Nassar
Foto: O escritor Raduan Nassar, autor do livro "Lavoura Arcaica", em 1989 - Jorge Araújo/Folhapress/Jorge Araújo/Folhapress.
FSP 22.11.2025

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